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Como a mídia reproduz a violência

Publicado em 29/04/2022 às 16:22
Como a mídia reproduz a violência

Debate sobre segurança pública deve incluir o efeito da mídia na propagação da criminalidade

* Roger Ferreira

Algumas verdades demoram para se impor no debate público. Os malefícios do cigarro foram ignorados por décadas até o tabaco ser regulado. O aquecimento planetário causado pelo excesso de gases na atmosfera passou a merecer políticas públicas, mas ainda tem seus negacionistas.  Um fato tão verdadeiro e nocivo como esses, mas ainda desprezado, é que conteúdos violentos na mídia geram comportamentos agressivos.

Não é hipótese, mas um fato provado. Uma síntese reuniu 284 estudos, com diversas metodologias e 51.597 pessoas envolvidas, medindo a correlação entre zero (nenhuma ligação entre mídia e comportamento agressivo) e um (ligação máxima). O resultado médio encontrado foi uma correlação entre 0,2 e 0,3, o que é muito significativo. Numa tradução simples, pode-se dizer que entre duas a três pessoas a cada grupo de dez manifestaram comportamento agressivo após consumirem conteúdos violentos de mídia.[1]

Seis grandes associações médicas dos Estados Unidos concluíram que “os dados apontam esmagadoramente para uma conexão causal entre violência na mídia e comportamento agressivo em algumas crianças”[2]. Mas os efeitos não se restringem a crianças e adolescentes. Apesar do consenso entre os especialistas, o tema é ignorado no debate sobre violência e segurança pública. O professor Craig Anderson, da Universidade de Iowa, compara esse desprezo ao ocorrido no caso do cigarro, em que a comunidade científica foi ignorada por décadas até que providências fossem tomadas.

A relação de causa e efeito entre violência na mídia e comportamentos agressivos não deveria surpreender. Há inúmeros exemplos dessa correlação. Um dos mais célebres é a publicação do romance Werther, de Goethe, no século XIX, na qual um jovem apaixonado e não-correspondido se mata. A publicação levou a uma onda de suicídios na Europa que ficou conhecida como “efeito Werther”. Sabe-se que a exposição de suicídios na mídia incentiva pessoas suscetíveis a se matar. A ponto de a Organização Mundial de Saúde ter lançado a publicação “Prevenção do Suicídio: um Manual para Profissionais da Mídia”[3], em que sugere que casos de suicídio simplesmente não sejam noticiados, recomendação que é reiterada por inúmeras associações médicas nacionais, inclusive a brasileira.

A influência da mídia sobre o comportamento humano é uma obviedade. Toda a indústria da propaganda se baseia na nossa tendência de imitar o que vemos na mídia. Pessoas que gostam de refrigerante podem decidir comprar uma Coca-Cola após assistir uma propaganda. E pessoas suscetíveis podem se matar ou cometer crimes e agressões após serem expostos a certos conteúdos.

O problema é que a mídia brasileira é repleta de violência em todos os segmentos: noticiário, entretenimento, dramaturgia, programas infantis, reality shows. Não há estudos sistemáticos sobre a quantidade de violência que consumimos no Brasil, mas podemos ter uma ideia pelo que foi medido nos Estados Unidos – país que exerce grande influência sobre a nossa forma de fazer e consumir mídia: um jovem americano vê cerca de 200.000 atos de violência na TV até a idade de 18 anos, incluindo 40.000 assassinatos[4]. Sessenta por cento dos programas de TV dos EUA contem violência, e esses programas exibem em média seis incidentes violentos por hora[5]. É uma carga brutal e deveríamos estar preocupados com os seus efeitos no comportamento das pessoas.

A violência é um fenômeno complexo que tem diversas causas, dentre as quais o ambiente familiar, a desigualdade, os valores, o funcionamento da Justiça e até mesmo condicionamentos biológicos. Mas não se pode ignorar o efeito da massa de conteúdos violentos presente nos meios de comunicação e nas redes sociais.

O mais amplo estudo já realizado sobre essas consequências concluiu que há, basicamente, três efeitos potencialmente nocivos: pessoas aprendem e/ou reproduzem atitudes e comportamento agressivos; tornam-se insensíveis à gravidade da violência; sentem medo exagerado de serem vítimas de violência no mundo real[6]. Esses efeitos, naturalmente, não são uniformes, e a relação entre ver a violência na mídia e o comportamento subsequente depende tanto da natureza do que é mostrado como da situação em que a pessoa se encontra. Modelos familiares, influência de colegas, posição social e econômica alteram significativamente a probabilidade de uma reação específica ao assistir uma cena de violência.

A forma como a violência é mostrada tem grande importância. A violência mostrada extensivamente, repetidas vezes, promove o aprendizado e o medo dos espectadores e aumenta a dessensibilização. Se a violência é de alguma forma glamourizada, cometida por autor atrativo, mostrada sem suas consequências, como parte normal do cotidiano, ou fica impune, a mensagem transmitida é que a agressão é uma alternativa de ação aceitável, e talvez até desejável.

O estilo de mídia varia de acordo com o país. Na maior parte da Europa é impensável a exposição de imagens de extrema violência sem uma justificativa de interesse público e cuidados com o horário de divulgação. Outros países possuem regulações sobre o assunto, como a Austrália, cujo Código de Práticas da TV Comercial prevê que a emissora não deve veicular material que possa “perturbar seriamente ou causar angústia nos expectadores, a menos que haja uma razão de interesse público”.

“O fato de o material privado estar em domínio público não dá às emissoras licença para veiculá-lo para um público mais amplo, como em um noticiário de televisão”, afirma a Autoridade Australiana de Comunicações e Mídia num pronunciamento recente. “A transmissão de material privado deve ser proporcional ao interesse público envolvido. Relatar a sentença do perpetrador da violência pode ser de interesse público, mas a inclusão de imagens em close da vítima durante o ataque não é”[7], conclui.

Verifica-se que em países cuja mídia é mais cuidadosa na exposição da violência há menos homicídios. Toda a Europa ocidental conta menos de 2 homicídios por grupo de cem mil habitantes. Na Austrália o índice é 0,8. Já nos EUA é 5,3, três vezes mais que na Europa[8]. Uma comparação interessante é entre EUA e Canadá, dois países ricos nos quais a posse de armas é amplamente disseminada. O índice de homicídios no Canadá é de 1,8, ou seja, três vezes menor que nos EUA. E o Canadá possui uma mídia que mostra muito menos violência. Pode ser bem mais que uma coincidência.

O Brasil tem uma cultura de mídia que se identifica mais com a dos Estados Unidos. Casos de violência urbana são mostrados em detalhes nas TVs durante todo o dia, muitas vezes entre programas infantis, e as opções de entretenimento também são repletas de atos violentos. Ao contrário do que é praticado na Austrália, por exemplo, imagens de violência captadas pelos onipresentes celulares e câmeras de segurança são disputadas pelas emissoras e exibidas sem ressalvas de horário.

 

 

Na maior parte dos casos o conteúdo se limita à cena violenta em si, muitas vezes funcionando quase como um tutorial para que pessoas predispostas à criminalidade possam se inspirar, e deixando o espectador apavorado. O número de cenas violentas mostradas cresce mesmo quando há queda nos índices de criminalidade. Nos Estados Unidos a cobertura de casos de homicídio nas TVs cresceu 600% num período que os assassinatos caíram 20%, entre 1990 e 1998[9], e o mesmo ocorre no Brasil.

Em 2021 o Brasil registrou o menor número de mortes violentas da série histórica iniciada em 2007. O Estado de São Paulo reduziu os assassinatos em mais de 80% desde 2000 e possui um índice de 6,34 homicídios por grupo de cem mil habitantes[10], um número comparável aos 5,3 dos Estados Unidos. Mas a exposição da violência segue maciça. A iniciativa Paz na Mídia analisou mais de 200 mil matérias veiculadas pelos quatro principais telejornais nacionais (Jornal Nacional, Jornal do SBT, Jornal da Band e Jornal da Record) entre novembro de 2013 e março de 2022 e constatou que 54% do tempo foi dedicado a assuntos negativos. A violência foi mostrada em 17% do tempo. Já assuntos positivos ocuparam 18%. Assuntos violentos e negativos somaram 71% do tempo dos telejornais[11].

Não se trata, obviamente, de ignorar os graves problemas de segurança que existem no Brasil. Mas é inescapável concluir que predomina a prática do sensacionalismo para atrair audiência mobilizando o viés negativo, um de nossos condicionamentos mais profundos. Os experimentos mostram que os fatos, palavras e imagens negativos têm mais efeito sobre nós do que os positivos. A negatividade é um ímã para a nossa atenção. Na disputa feroz pela audiência e pelas verbas dos anunciantes, veículos e comunicadores (e até mesmo nós em nossas redes sociais) usamos e abusamos de imagens violentas para captar atenção da forma mais fácil.

Mas a que preço? Um deles é o próprio aumento da violência. Sim, a mídia estimula a violência – mesmo quando fala que a combate. E há outros malefícios como o estresse causado por notícias[12]. Muitos veículos divulgam até mesmo sugestões para as pessoas navegarem no noticiário sem comprometer sua saúde mental.

Os problemas chegam até à esfera política. O cenário mostrado na mídia leva à prostração ou ao radicalismo, pois se tudo está tão ruim a única solução é mudar tudo, enfraquecendo as propostas que defendem mudanças incrementais. É como se as más notícias preparassem o terreno para as propostas radicais. Donald Trump e Jair Bolsonaro são, de alguma forma, beneficiários desse efeito, como já notaram alguns analistas. Sim, a mídia cria condições para o sucesso de propostas autoritárias – mesmo quando parece combatê-las. E no mundo como um todo ocorre o enfraquecimento das práticas democráticas, como verifica a Demax, plataforma que avalia mais de 200 itens de liberdade política, igualdade e direitos civis[13].

É óbvia a necessidade de estar informado e combater a criminalidade, mas a mídia deve ajudar nesses objetivos – e não atrapalhar. O jornalismo está convidado a ampliar o seu papel e apresentar também possíveis respostas aos desafios – e não apenas amontoar problemas afligindo as pessoas. Uma abordagem promissora é o “jornalismo de soluções”, que busca romper paradigmas em diversos países[14]. Tradicionalmente, o jornalismo resiste em considerar as soluções como tópicos de pesquisa, mas essa mentalidade tem que mudar, pois as soluções são tão noticiáveis quanto os problemas, e a ambos podem ser aplicados os mais rigorosos padrões jornalísticos. Trata-se, em resumo, de fazer um jornalismo melhor e mais completo.

A exposição despropositada de cenas de violência urbana durante todo o dia deve ser revista. Padrões éticos mais exigentes e autorregulação deveriam bastar para isso, mas pode ser necessária a força da legislação como existe em alguns países, como é o caso do Uruguai. A Lei dos Meios, que regula a prestação de serviços de rádio, TV e outros, afirma no artigo 32 que “Sem prejuízo da informação dos fatos”, a programação veiculada entre 6h e 22h “(…) não deverá incluir imagens com violência excessiva, entendida como violência explícita utilizada de forma desmesurada ou reiterada, em especial se tem resultados como lesões e morte de pessoas e outros seres vivos[15].” A lei uruguaia impede ainda a exibição, salvo interesse público, de cenas que “abusem do sofrimento, do pânico e do terror, ou que exibam cadáveres resultados de crimes em forma aberta”.

Tramita no Senado brasileiro um projeto-de-lei, fruto da Ideia Legislativa apresentada por Jonas Rafael Rossato que recebeu mais de 22 mil assinaturas, para restringir a exposição de cenas de violência nas TVs, em especial em programas policiais, entre 6h e 22h. É uma ideia que merece ser discutida.

Toda essa discussão pode colocar a mídia num patamar em que ajude mais a sociedade – e prejudique menos. Medos válidos têm o seu papel e nos livram de perigos. Medos falsos ou superestimados apenas causam danos.

 

* Roger Ferreira, 56, é jornalista e Mestre em Ciências Políticas (FFLCH-USP). Atuou em veículos (Folha e Veja), em campanhas eleitorais e foi secretário de Comunicação de São Paulo (2004-2006). Lançou em 2013 a iniciativa Paz na Mídia (www.paznamidia.com.br) para estudar e debater a qualidade da mídia e seus impactos na política, na sociedade e também no comportamento e na saúde das pessoas.

 

[1] Revista Science, artigo dos professores Craig Anderson e Brad J. Bushman sistematizando as conclusões de quatro tipos de estudos: 46 estudos longitudinais, ou seja, que acompanham grupos de pessoas ao longo do tempo, envolvendo 4.975 participantes; 86 estudos transversais, ou seja, que observam dados coletados em determinados momentos, envolvendo 37.341 participantes; 28 estudos de campo, ou seja, que coletam dados de determinadas comunidades, envolvendo 1.976 participantes; 124 experimentos laboratoriais, ou seja, que submetem pessoas a determinadas situações, envolvendo 7.305 participantes. In https://bit.ly/3IjZoPR

[2] American Psychological Association, American Academy of Pediatrics, American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, American Medical Association, American Academy of Family Physicians e American Psychiatric Association – Joint Statement on the Impact of Entertainment Violence on Children: Congressional Public Health; Summit (26 July 2000); https://bit.ly/33NAadv

[3] Prevenção do Suicídio: um Manual para Profissionais da Mídia, in https://bit.ly/3BNdCGh

[4] The Statistic Brain Research Institute (2013), Television watching statistics, in https://bit.ly/3pdzDJs

[5] National Television Study: Executive Summary, University of California / Santa Barbara, University of North Carolina / Chapel Hill, University of Texas / Austin, University of Winsconsin / Madison, in https://bit.ly/3pe6L3B

[6] National Study of Television Violence, Executive Summary, estudo que envolveu mais de 300 pesquisadores de quatro universidades americanas e a gravação de mais de 10.000 horas de 3.000 programas, in https://bit.ly/3pe6L3B

[7] In https://bit.ly/3DNAUwF

[8] In https://bit.ly/3ucxrVf

[9] Barry Glassner, The Culture Of Fear

[10] In https://bit.ly/3jbb9gv

[11] In https://bit.ly/3szBRUi

[12] O estresse causado pelas notícias é um problema real, in https://bit.ly/3M2y6iv

[13] In https://bit.ly/35Q63TW

[14] Um bom exemplo é aSolutions Journalism Network, in https://bit.ly/3q3s74U

[15] In https://bit.ly/3KvHomN

 

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