Apesar de apresentar diferentes níveis de robustez, esta literatura demonstra que a exposição ao conteúdo violento tem diversos efeitos deletérios e duradouros, especialmente entre os jovens.
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O que é (ou deveria ser) notícia?
Publicado em 16/06/2021 às 17:26Interesse, Interesse Público, Interesse “do” Público e o Exemplo
*Roger Ferreira
Existe farta literatura que tenta explicar o que é notícia, ou seja, quais os atributos capazes de fazer o jornalista escolher um determinado fato ou situação (em detrimento de muitos outros) e apresentá-lo em sua mídia, transformando-o, portanto, em notícia. É uma discussão relevante pois tenta esclarecer o que é (ou deveria ser) escolhido e colocado sob visibilidade pública. Como descreveu Walter Lippman[1], “a atenção da imprensa é como a lanterna que se move incansavelmente, resgatando da escuridão para a nossa visão um episódio após o outro.”
Alguns fatos ganham visibilidade e outros permanecem na escuridão. É chamado “Efeito Imprensa”, cujo conceito pode ser ampliado para os dias atuais em que as redes sociais têm enorme presença e desempenham, nesta abordagem, o mesmo “efeito imprensa”, ou “efeito mídia”, pois colocam fatos em evidência e conferem visibilidade a eles – enquanto outros permanecem na escuridão, percebidos apenas por quem tem com eles uma relação direta. Nos dias atuais, todos somos comunicadores.
É importante discutir os atributos que tornam um fato “noticiável” (e outros, não) pelo fato de a mídia não ser neutra. Ela nos influencia e promove mudanças de comportamento, como bem sabe a indústria da propaganda, especializada em criar conteúdos que aumentam o consumo de produtos e serviços. Além de promover o consumo, conteúdos podem promover boas reações e comportamentos, enquanto outros podem despertar reações negativas e até mesmo comportamentos agressivos.
A mídia tende a ser imitada especialmente por pessoas suscetíveis a conteúdos específicos, das mais variadas formas. Seguem alguns exemplos: pessoas que gostam de refrigerante podem ser influenciadas por uma propaganda da Coca-Cola e comprar o produto (é o chamado “target” da publicidade); pessoas deprimidas podem cometer suicídio se encontrarem na mídia um relato com o qual se identifiquem (e em relação a isso há inclusive recomendação da Organização Mundial da Saúde para jornalistas[2]); e bons exemplos trazem esperanças e podem inspirar pessoas que buscam caminhos melhores para as suas vidas.
A responsabilidade, portanto, é inerente ao ato de comunicar, pois a comunicação influencia as pessoas, e o simples ato de escolher o que comunicar (em detrimento de outros fatos) tem consequências. Isso vale para a esfera pessoal, nos convidando a refletir sobre o que criamos e compartilhamos nas redes sociais, e vale especialmente para os profissionais de comunicação, dentre eles os jornalistas, que são responsáveis por notícias vistas por muitas pessoas.
A questão dos interesses
O que deve ser notícia e o que não deve? Um conceito se destaca na literatura: o interesse. Como afirma o professor Manuel Carlos Chaparro[3], o interesse pode ser considerado o atributo de definição do jornalismo. Só é notícia o relato que projeta interesses, desperta interesses ou responde a interesses.
Um fato é mais noticioso do que outro na medida em reúne mais atributos de interesse, dos quais se pode citar alguns: atualidade (o fato recente é mais noticioso do que o antigo), proximidade (o fato próximo é mais notícia que o distante), notoriedade (o fato relativo a pessoas famosas atrai mais interesse), conflito (a tensão atrai interesse), consequências (o fato que afeta mais pessoas é mais interessante), curiosidade (o inusitado é mais atrativo), dramaticidade (a carga emocional aumenta o interesse), surpresa (o inesperado atrai mais atenção). É importante agregar outro fator negligenciado na literatura: a negatividade, pois há consenso entre estudiosos de que fatos negativos atraem mais interesse do que relatos positivos. A negatividade é um ímã para a nossa atenção e é usada largamente na mídia.[4]
Mas isso não é tudo. É importante perceber que todos esses atributos pertencem à esfera do que se poderia chamar de técnica, ou seja, não carregam a dimensão ética essencial à função de comunicar. Simplesmente atraem a atenção. E o objetivo da comunicação não pode ser apenas atrair a atenção, pois comunicar gera consequências, que podem ser boas ou ruins. É necessário incluir a ética no entendimento do que é notícia.
O professor Chaparro aprofunda o tema ao discutir o que deve ser entendido como “interesse” na sociedade humana? Cita Kant, para quem interesse é o que desperta o desejo, a ser mediado pela razão. Valerio Rohden parte do conceito de Kant para afirmar que a razão pode atuar de duas formas: ou sancionando automaticamente o desejo despertado pelo interesse, ou determinando princípios para a fruição (ou não) do prazer desse desejo de acordo com regras.
Habermas adiciona a moldura cultural ao que Kant e Rohden circunscrevem aos limites individuais. Para ele, a definição de “interesses” deve levar em conta as questões determinadas pelo trabalho e pela interação social, que são formas de reprodução e autoconstituição da espécie humana.
Torna-se necessário agregar um adjetivo: Interesse Público. A dinâmica dos interesses impõe aos jornalistas o dever vital de se conectar a princípios éticos. Como afirma Chaparro, “a atividade jornalística deve ser avalizada pelas razões do interesse público, parâmetro gerador dos critérios jornalísticos de valoração da informação. E, quanto mais vigorosos forem os atributos de relevância social da informação, maior será a dimensão do interesse público atendido.”
A simples busca do “interesse” pode saciar desejos primitivos, mas não é mediada pela razão que busca o melhor para nós como indivíduos e como espécie. É fundamental diferenciar o interesse “público”, que abrange temas que afetam a uma coletividade, do interesse “do” público, que por vezes pode estar associado a impulsos negativos como, por exemplo, curiosidade mórbida ou sexual em relação a um fato da esfera privada.
Infelizmente, a observação do jornalismo atual revela a frequente transformação em notícia de fatos que deveriam estar restritos à esfera particular, pois nada agregam no que se refere ao interesse público. Os jornalistas, nesses casos, observam apenas os atributos de interesse para atrair a atenção e destacar um veículo sobre outro, sem atentar para a dimensão ética e as consequências do que comunicam.
A dimensão do Exemplo
A incorporação do conceito de Interesse Público faz avançar o entendimento do que deve (ou não) ser considerado notícia, mas não esgota a questão. Como vimos, as pessoas tendem a imitar o que veem na mídia, e por esse motivo o conceito que emerge é o do Exemplo. Em última instância, o critério de avaliação de uma notícia (ou conteúdo de mídia) é se ela constitui um bom exemplo ou um mau exemplo.
O Paz na Mídia estabeleceu uma metodologia de avaliação de conteúdo que, no primeiro filtro, divide os relatos entre positivos (que mostram bons aspectos da vida), negativos (no qual os problemas são apresentados) e neutros (como previsão do tempo e resultados do futebol). E já temos uma fatia do noticiário que podemos considerar de “bons exemplos”: as notícias positivas, que não passam de 18% na mostra analisada[5].
Os relatos negativos totalizam 71% do tempo dos telejornais, sendo que 17% tratam de violência – um recorte importante pela gravidade de sua reprodução na sociedade. Esses relatos podem representar tanto bons como maus exemplos. São bons exemplos (e chamamos de Conteúdo Negativo Reflexivo) se apresentados em contexto adequado, aumentando ou criando consciência sobre o tema, mostrando possíveis soluções, em estilo e frequência adequados, ou seja, numa abordagem na qual o problema é tratado na perspectiva do seu enfrentamento e superação. E são maus exemplos (e chamamos de Conteúdo Negativo Tóxico) se tratarem de fato estritamente privado, ou fato de interesse público tratado em estilo e frequência inadequados, com abordagem voltada a causar sensação em detrimento da busca de soluções e da criação de consciência.
São avaliações sutis. Mas a reflexão é necessária se queremos ter, no século 21, uma mídia que contribua para o desenvolvimento humano, em vez de alimentar nossas tendências mais primitivas.
[1] In The Press Effect: Politicians, Journalists, and the Stories that Shape the Political World, 1st Edition
[2] Organização Mundial de Saúde: PREVENÇÃO DO SUICÍDIO: UM MANUAL PARA PROFISSIONAIS DA MÍDIA, in https://bit.ly/3wEdqpm
[3] Pragmática do Jornalismo, Summus Editorial, 2007
[4] Psychology: Why bad news dominates the headlines, in https://bbc.in/35jlRL0
[5] A iniciativa Paz na Mídia classifica desde 2013 os quatro principais telejornais nacionais: Jornal Nacional, Jornal do SBT, Jornal da Band e Jornal da Record. https://www.paznamidia.com.br/ivm/
Roger Ferreira, 55, é jornalista, Mestre em Ciências Políticas (FFLCH-USP) e ativista da iniciativa Paz na Mídia (www.paznamidia.com.br).
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